CONHECI ED MORT¹ em um bar em Copacabana. Estava sozinho em uma mesa próxima a uma janela, uma garrafa de cerveja e um copo meio cheio ou meio vazio, certamente absorto em algum caso complicado. Na hora senti-me taquicárdico; ali estava ao meu alcance, meu ídolo de juventude. Uma verdadeira lenda. Aproximei-me relutante mas confiante. "Ed Mort, é você mesmo?", perguntei retoricamente - claro que era ele, como eu poderia me enganar a esse respeito? Pareceu-me que o universo tinha planejado aquele encontro, pois dizem por aí que quando queremos muito uma coisa, o universo se põe em movimento em nosso favor. Sei lá se é verdade. Não é não. Mas que seja. Só sei que ele estava ali, ao meu alcance em um ambiente etílico. Deveria estar em um bom dia pois me retribuiu o sorriso e confirmou a identidade. Êxtase dos êxtases, convidou-me a sentar. Pediu mais duas cervejas.
Foi Ed Mort quem me influenciou à carreira detetivista. Desde adolescente sabia ser esse meu destino profissional. "Tu vai morrer de fome", sentenciou lúcido, o meu pai. Mas eu era determinado, não deixaria que um comentário totalmente realista me fizesse desistir. Afinal de contas, eu não tinha provado a ele, depois de acurada investigação que a mamãe comia doces escondido mesmo sendo diabética? Não provei também que a filha dele, minha irmã, saia escondida com o Nestor nas noites de sábado para ir para seus redenz-vous? Fiz questão de lhe mostrar minha fluência na língua de Bonaparte para valorizar minha descoberta. Depois me arrependi, ele deu um coro em Rosinha...ficou um ano sem falar comigo. Mas a investigação é como o progresso: não pode parar.
Todos os dias procurava nos jornais alguma notícia sobre algum caso complicado que Ed resolvera. Para mim, nem Sherlock em seus melhores anos se igualava a Ed. Ed Mort. Até os meus 20 anos já tinha lido todas as histórias que o Veríssimo tinha escrito sobre as proezas do Ed. Veríssimo foi o biografo da sumidade.
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Por pressão do meu pai, acabei me tornando soldado temporário do Exército. Fiquei 8 anos. 8 anos perdidos que poderiam ter sido aproveitados em campo, em investigações. Mas eu precisava dar uma satisfação pro velho. No final das contas, aprender a atirar, sobreviver na selva e cumprir uma extenuante rotina de exercícios físicos me fez bem, me faria um detetive mais preparado. Não como Ed. Ed era insuperável. Uma lenda. Nunca precisou desse negócio de exercício. Ed era cerebral.
Ao sair do Exército, vontade do pai satisfeita, fui laureado com louvor ao final do curso de detetive particular que eu fiz por correspondência pelo aclamado Instituto Universal brasileiro. Bendito Instituto! Tão universal mas tão brasileiro... Peguei um empréstimo no Banco do Brasil e aluguei uma salinha em um edifício já decadente em Copacabana e coloquei na placa: Ariovaldo - Detetive Particular. Tinha consciência de que competir no mesmo ramo de Ed, na mesma cidade, e no mesmo bairro, seria coisa difícil, mas para mim, saber que Ed estava próximo, que eu poderia me encontrar com ele na rua, na praia, no calçadão, me provocava calafrios.
Ed me confidenciara que estava ali, bebendo, relaxando, pois precisava pensar sobre um caso difícil. Um marido que tinha desaparecido depois de ter saído para comprar cigarros.
- Sou um especialista em achar marido fujão, disse-me Ed.
Claro que eu sabia. Não tinha marido fujão que não fosse encontrado pela perspicácia investigativa de Ed. Ed Mort.
- Eu sei. Você é meu guia, meu espelho, minha inspiração... li seus casos mais complexos nos livros que o Fernando Veríssimo escreveu sobre você.
- Implorou para que eu liberasse as publicações...
- Não queria se expor?
- Sou um detetive particular, gosto das sombras.
- Sim, claro que entendo, somos homens das sombras - respondi abaixando um pouco a voz e a cabeça numa tentativa de dissimular e esconder de ouvidos e olhos curiosos que porventura ali estivessem.
- Só concordei porque fixamos contrato onde eu receberia 60% dos royalties, o que é uma raridade no mercado editorial.
Imaginei-me tendo essa mesma glória: Meus casos resolvidos biografados por um autor famoso. Talvez Rubem Braga. Eu também seria uma lenda pois me espelhava em uma lenda já lendária...Ao final de quase duas horas de boa e extasiante conversa, Ed precisava ir embora. Aquele breve encontro tinha valido mais que qualquer curso por correspondência ou faculdade que eu tivesse feito. Tinha sido muito generoso. Tão famoso e tão humilde...
Ao nos despedirmos na porta do bar, Ed me deu seu último e mais importante conselho:
- Não se esqueça das baratas² no escritório...elas fazem boa companhia quando não temos nada pra fazer. O rato pode até ser dispensado, mas as baratas, não!
Meus olhos lacrimejaram com tamanha sabedoria.
Aquele encontro foi meu start, meu "haja luz". Minha motivação detetivesca recebeu um influxo de energia nuclear que me faria chegar aos píncaros da glória na profissão. Mas nunca seria um Ed. Ed Mort. Ed é único.
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Na segunda-feira, dez da manhã, tocaram a campainha do meu escritório. Estava focado em ler o Manual Pleno de Investigação Particular, escrito por Ed quando ele só tinha 15 anos. Que capacidade intelectual desmedida! O grito da campainha tirou-me da leitura benfazeja. Seria um cliente? Meu primeiro cliente? Obrigado ó céus, luz da aurora, olho universal que tudo vê! Obrigado! A conversa com Ed certamente me traria bons fluídos. Eu não tinha uma secretária(mas já tinha providenciado as baratas!). Abri a porta e dei de cara com um sujeito pequeno, chapéu na cabeça, óculos escuros e uma barba que parecia postiça. Estaria disfarçado?
- Você é Ariovaldo, o detetive?
- Este é o meu nome. Valdo. Ariovaldo. Está na placa.
- Preciso urgentemente dos seus serviços...
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1 - Luís Fernando Veríssimo criou o personagem Ed Mort em 1979, inicialmente no conto "A Armadilha", que foi publicado no livro Ed Mort e Outras Histórias. O personagem é uma paródia dos detetives clássicos da literatura policial, como Philip Marlowe, de Raymond Chandler, e Dashiell Hammett. Ed Mort é um detetive particular carioca, trapalhão e sempre sem dinheiro, que se mete em todo tipo de encrenca.
2 - Ele divide seu escritório em Copacabana, chamado de "escri" por ser muito pequeno, com 117 baratas e um rato albino chamado Voltaire
3 - Se você não conhece o personagem Ed Mort do Fernando Veríssimo a experiência desta primeira aventura de Ariovaldo poderá ficar prejudicada. Lamento pela sua falta de cultura detetivesca nacional.