Tem tragédias que só quem nasceu antes dos anos 70 sofreu. Algumas dessas tragédias marcaram profundamente nossas vidas. Muitos entraram em depressão por causa de algumas delas. Outros não se contendo, xingavam a existência e a vida. Se você nasceu nos anos 2000 e anda pela blogosfera, você nunca passou por nenhum desses problemas. Aliás, você é esquisito se tem até 25 anos e escreve blogues - pois decididamente, blogue é coisa de velho. Porém, se você está passando por aqui, deixei até uns links para que você saiba do que estou falando.
Quando as fichas acabavam no meio da ligação feita do orelhão.
Era triste, ainda mais se estava no meio de uma ligação para a namorada marcando aquele encontro no sábado.
A agulha riscava o LP bem na melhor música.
Isso era uma tragédia de primeira grandeza. Você estava ouvindo aquele seu disco predileto e em algum momento uma mesma frase ficava se repetindo, repetindo...
Você datilografava errado a última palavra da página.
Isso era quase motivo de eu meter a cabeça na parede. E pior ainda...não tinha fita corretiva de máquina de escrever pra consertar.
O locutor falava as horas ou soltava uma vinheta BEM NO MEIO DA MÚSICA que você tinha passado horas esperando pra gravar na fita K7.
Isso era uma falta de respeito a nós, que gravávamos músicas diretamente do rádio.... E depois o toca-fitas mastigava a fita K7... O locutor não falava o nome da música quando ela terminava...e você ficava anos sem saber quem cantava ou como chamava aquela música que você tinha amado.
Você tinha que pagar multa por devolver a fita de vídeo VHS pra locadora sem rebobinar.
Eu paguei algumas dessas multas por pura preguiça de rebobinar as VHS.
O Ki-suco vazava da garrafinha da sua lancheira.
Ah, mas isso era trágico demais!
Você tirava as letras das músicas em inglês tudo errado e depois descobria, no folheto da Fisk, que estava tudo errado mesmo, mas já era tarde, pois você já tinha decorado errado (e canta errado até hoje).
Eu gostava de ver o Sr Fisk dando aulas de inglês na TV com música mas eu não aprendia nada mas gostava das músicas...
Você arranhava com todo cuidado, mas quando levantava o papel via que o bichinho do decalque do Ploc tinha saído sem uma perninha.
A televisão resolvia sair do ar no dia do último capítulo da novela... e seu pai tinha que subir no telhado pra mexer na antena...e ele gritava lá de cima “melhorou?” E você, embaixo, avisava: “melhorou o 5, o 7 e o 9. Piorou o 4, o 11 e o 13”. E isso já um pouco mais recente, pois quando eu era menino era até mais fácil, só existia lá onde eu morava a Globo e a Tupi. Quando era pra ver a Globo rodava a antena pro lado, quando era a Tupi, rodava pro outro...
Chegar à padaria e lembrar que você tinha esquecido o “casco” do refrigerante.
Isso até parece que está querendo voltar com toda essa onda de "salvem o planeta".
Você descobria que todas as 36 fotos do seu aniversário tinham ficado desfocadas e algumas tinham queimado, porque o rebobinador da câmera tava meio enguiçado.
Isso então, era tragédia num nível inimaginável.
Você pensava que ia morrer porque engoliu uma bala Soft.
Eu, algumas vezes passei pelo drama.
Então, filho, essas foram algumas tragédias que seu pai sofreu na sua idade e que você nunca via sofrer. Tem muitas outras, mas eu sei que você tá achando essa conversa bem chata.
Querido Eduardo,
ResponderExcluirLer suas “tragédias” é como abrir um álbum de memórias onde até o que doeu vira abraço. Você vai puxando um fio de tempo que, sem perceber, amarra gerações inteiras e a gente se reconhece ali, mesmo que alguns tenham vivido só pela metade, ou só por ouvir contar.
O mais bonito do seu texto é que, enquanto você descreve esses dramas tão pequenos quanto gigantes, mostram também como aprendiam a viver: esperando, tentando, errando, improvisando. Porque nada vinha pronto, nada era automático, e justamente por isso tudo tinha mais alma.
O mundo era cheio de riscos: a agulha que arranhava o LP, o Ki-suco que vazava, a fita K7 mastigada, o pai no telhado gritando “melhorou?”. Mas era um mundo em que se participava mais da vida com o corpo, com a paciência, com o medo e com a alegria.
Meu pai muitas vezes senta e conta quase essa mesma história .
Seu texto não é sobre o passado. É sobre como sobreviver foi, no fim das contas, um gesto de afeto.
O mais curioso é perceber que, olhando daqui, essas tragédias têm quase um charme. Elas falam de um tempo em que errar dava trabalho, consertar levava horas, e esperar era inevitável. Um tempo em que a vida não cabia em tela nenhuma mas cabia na memória, num telhado, num decalque do Ploc sem perninha.
Eu não vivi nada disso, Eduardo. Mas adorei visitar esse universo onde até as pequenas frustrações tinham alma.
E, sinceramente? Se isso é “conversa chata”, então que bom ser chata assim.
Abraço
Fernanda
Vivi a esmagadora maioria dessas situações e isso, mesmo que eu tenha tentado até aqui omitir, atesta a minha faixa etária.
ResponderExcluirO K7 desenrolando no aparelho foi pra mim a pior delas.
Abraço, Eduardo.