sábado, 8 de novembro de 2025

Minha Sogra



 MINHA SOGRA acha que eu quero matá-la. Isso mesmo. Depois de 20 anos de convivência eu virei seu maior pesadelo. Tenho culpa no cartório? Nem no cartório nem em lugar nenhum. Acho. Ela tem 83 anos. Lúcida. Anda na rua sozinha, cozinha, conversa bem sobre qualquer assunto que não seja eu. Encasquetou que eu quero vê-la pelas costas, quiçá, numa sepultura. 

Mania de perseguição ela tem desde mais nova. Era sempre um carro preto que a seguia quando ela estava andando na rua. Era um cara mal encarado que a encarou por muito tempo dentro do ônibus. Era a mulher do pastor que durante o culto ficava olhando muito para ela. Era o vizinho da frente que a espionava através da minúscula abertura entre o portão e a parede.

Diz o médico que é um tipo de esquizofrenia. A pessoa "escolhe" alguém próximo para ser seu alvo. No caso, o escolhido fui eu.  Diz que eu quero expulsá-la de casa mancomunado que estou com a mulher de um de seus  filhos. Outro alvo secundário ou coadjuvante. Eu lhe disse há 23 anos que ela poderia ficar na minha casa até que ela morresse. De graça. Eu construiria um segundo andar para morar com a sua filha com a qual me casaria. E casei. E construí. 

Isso talvez seja reflexo da sua vivência por quase 40 anos com a violência na porta de casa. Durante todo esse tempo moraram em uma favela que tinha dias bons e ruins. Os ruins, claro, os dias de tiroteios. Traficante contra traficante, traficante contra polícia. Tinha uma boca de fumo literalmente ao lado do seu portão. Muitas vezes, soldados do tráfico, garotos que ela conhecia desde pequenos, invadiu sua casa em busca de abrigo fugindo de algum perseguidor, fosse polícia, fosse traficante rival. E o que podiam fazer a não ser abrir a porta? Certa vez um desses abrigados sugeriu sair de casa abraçado com minha esposa fingindo serem namorados para despistar. ISSO NÃO! protestou ela. E não saiu. 

E não é que a polícia bateu na porta, entrou na casa à procura do tal que se escondeu debaixo da cama? Os policias foram nos cômodos da casa mas não sei se por incompetência ou milagre, não achou o meliante. Depois que tudo se acalmou ele pôde sair e ir embora, não sem ouvir antes da minha sogra um "Vai com Deus, muda de vida que Jesus tem um plano pra você". Não sei que fim levou e nem sei se o tal plano se concretizou.

Os dias bons na favela eram os dias sem tiroteio. A favela fervilha: à noite, é todo mundo na rua. Crianças, adolescentes, adultos. Caixas de sons tocando o funk da vez. Muitos pontos de vendas de cachorro quente, açaí, sorvetes. A favela é exemplo da economia da livre iniciativa. Fila para comprar drogas, tudo bem organizado pelos soldados armados do movimento. A primeira vez que entrei lá com minha futura esposa ela me deu a dica: "anda normalmente e não fica encarando". Segui à risca. Sem problemas. Em sua grande maioria, na favela estão  pessoas honestas, trabalhadoras, que apesar de tudo, se agarram a uma  felicidade que talvez seja resistência.

Mas o fato é que agora, ela, minha sogra, pensa que eu quero matá-la e despejá-la da sua (minha) casa. A esposa diz que eu tenho que entender a cabecinha dela. Eu entendo. Acho. Pois ela espalhou pra Deus e o mundo que eu pretendia matá-la. Depois a versão mudou: eu contratei por 20 mil, milicianos para matá-la. Reclamava que eu poderia ter dado os tais 20 mil para ela comprar um casinha e se mudar.

Tudo isso ela diz para minha esposa, não para mim. De mim ela foge feito diabo da cruz. E só mora a uma distância de uma descida de escada. Quando estou limpando o quintal e ela me vê, limita-se a dizer um "bom dia" meio em grunhido, para dentro, cabeça baixa sem me encarar. Eu para relaxar, respondo bem alegre e efusivo "e aí, dona Josefa, tudo bem?". "Graças a Deus, tô comendo, tô andando, tá tudo bem.." é o que ela sempre responde.

Essa paranoia começou quando ela ouviu do seu quarto pessoas na rua dizendo que "ela morava sozinha" e que seria "fácil entrar na casa" - pronto. Ela se identificou com o "ela morava sozinha" e por tabela, chegou à conclusão que era eu que estava por trás da possível invasão. 

Travou as janelas do seu quarto e da sala. À Noite, coloca duas varas de ferro na porta, distribui panelas em volta para numa eventual invasão ela ser acordada pelo barulho.  Saiu do seu quarto e foi dormir na área de serviço. Fez 4 cadeiras de cama. Não adiantou a filha reclamar. Dizia que dormia muito bem ali. Passou quase um mês inteiro dormindo assim até ter coragem de voltar para o quarto.

E sim, no início eu, minha esposa e o cunhado mais chegado conversamos com ela. Tentamos dissuadi-la da ideia que eu estava tramando contra. "Mas eu ouvi"...repetia ela. "Mas a senhora nem sabe se ouviu mesmo e se ouviu, como pode saber que estavam falando da senhora" - tentei argumentar. Em vão. Ela tinha ouvido alto e claro.

É essa minha paga por tê-la tirado do meio da favela e ter levado toda a família para um bairro melhor... 

Em tempos passados, ela me idolatrava. Afinal eu lhe dei uma casa e ainda casei com a filha (não que a filha estivesse encalhada). Meu sogro, que já foi alvo de uma crônica minha aqui, era um amor de pessoa. E sim, me chamava de Edualdo. Se vivo estivesse, certamente estaria repreendendo a esposa com aquela voz manhosa de mineiro-viciado-em-queijo: "mas Zefinha, filhinha, você acha que o Edualdo ia lhe fazer mal"? 

Talvez ela me olhasse desconfiada, de rabo de olho, e repetisse: "Eu ouvi".


                                                                * * * * * * * * * * * * 



34 comentários:

  1. Ãinda bem que no seu caso foi só na ficção. Dependendo da situação, sogra pode ser letal para o relacionamento à dois.
    Abraço e boa semana.

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  2. Bah, já estava com pena de ti.Ainda bem que foi brincadeirinha. Mas nela citaste fatos importantes e verdadeiros> esquizofrenia, mania de perseguição entre outros.
    Gostei de ler! abraços, chiuca

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  3. Eduardo,

    confesso que fui lendo com o coração apertado e no fim acabei rindo.
    Você construiu o texto com um realismo tão convincente, cheio de detalhes, que parecia mesmo um drama familiar daqueles sem solução. E então vem o desfecho, com esse tom leve e espirituoso, e a gente entende: era também uma brincadeira, uma forma bem-humorada de falar sobre as loucuras da convivência humana.
    Teu talento está justamente aí em transformar o cotidiano, mesmo o mais tenso, em narrativa viva.

    Adorei a leitura,
    Fernanda

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    1. Fernanda, é tudo real, está acontecendo. O erro foi meu ao deixar uma frase que poderia anular o que eu disse antes, mas esta não era minha intenção. Coisa de cronista ruim...rs

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    2. Eduardo,

      Deus do Céu!
      Teu texto é muito intenso, humano, e por isso mesmo bonito.

      A tua voz carrega a exaustão de quem fez tudo certo e, ainda assim, virou o vilão da história. Sente-se o peso dos anos de cuidado, da promessa cumprida, da casa construída, e a ironia de agora ser acusado de querer matar quem apenas quis proteger.

      A sogra, nos teus retratos, é ao mesmo tempo trágica e real: cercada de panelas, dormindo sobre cadeiras, ouvindo vozes que a confirmam no medo.
      E tu, de algum modo, tentas sobreviver ao absurdo com um humor triste esse riso que a gente dá quando já não tem mais o que explicar.

      Teu desabafo é mais que pessoal: é o retrato silencioso de quem ama sem retorno, de quem vive cercado por feridas que não pode curar. Há ternura no meio da tua raiva, e isso te salva porque só quem ainda sente amor sofre tanto por não ser compreendido.

      Segue escrevendo, Eduardo.
      Tua dor dita com verdade vira arte.

      Com carinho,

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  4. Meus três comentaristas acima entenderam que tudo o que escrevi antes do "to brincando" foi ficção, mas não, tudo é real. Esse "to brincando" foi referência à frase " essa minha paga por tê-la tirado do meio da favela e ter levado toda a família para um bairro melhor... "

    Mas de fato, ela acha que eu quero me livrar dela. Acho que vou tirar a frase...rs

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  5. DDudualdo, o exterminador de sogras!

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  6. Também pensei que era ficção, mas se é real sua sogra precisa de tratamento. Pode tornar-se perigosa. Que história, meu amigo. Desejo-lhe sorte.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  7. É pena ela agora estar assim. Mas ainda se vão dando bem. Não é fácil viver com a sogra. Apesar que viver com a sogra do meu marido era mais suportável :P

    Mas a Srª assim é que é chato :/ Espero que acalme de alguma maneira.

    Cláudia - eutambemtenhoumblog

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  8. Gente! Que história. Gostei muito da crônica. Tem pessoas que são desconfiadas mesmo.

    Boa semana!

    O JOVEM JORNALISTA está no ar cheio de posts novos e novidades! Não deixe de conferir!

    Jovem Jornalista
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    Até mais, Emerson Garcia

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  9. Adorei a crónica, ser "escolhido" para tal é realmente desconfortável!

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    Bjxxx,
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  10. Olá, Eduardo!
    Há sogras e sogras...
    Brincaderias à parte, um conto bem contado.
    Tenha uma nova semana abençoada!
    Abraços fraternos

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  11. Olá, Eduardo
    Em momento algum eu pensei que fosse brincadeira. Entendo os dois, você e sua sogra. As doenças psiquiátricas são realmente difíceis de lidar. imagino os traumas causados pela vida passada. Como diz a frase: "Rio de Janeiro não é para amador não." O que me deixou aliviada foi a forma que você esta lidando com essa situação, pois é importante para sua saúde emocional. Enfim que ela tenha um luz divina e acabe logo com essa perseguição.
    Te envio boas energias ☺

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  12. Oi Edu, a princípio me diverti com a crônica, afinal as sogras já são conhecidas por atormentar a vida do genro, mas eu jamais compreenderia que tudo é real. Puxa vida, agora ela tem uma vida muito mais segura, ao lado da filha, genro e neto... Longe de um destino perigoso e deveria ser um pouco mais grata. Ela não o é porque o medo a fez ficar assim, fomentar uma crosta e por isso tornou-se tão arredia. E mais: ela criou algo na cabeça e no pensamento que fica difícil desmantelar. Ela sempre te temerá sem nenhuma razão para isso...É de fundo emocional e por isso apenas um tratamento poderá aliviar.
    Desejo sorte par você amigo, prossiga na empatia, no bom dia, nos sorrisos... Quem sabe ela perceberá em tempo...
    Boa semana querido!!

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  13. Oi, Edu, quando vi na minha coluna uma crônica com a sogra,
    conhecendo um pouco de seu espírito brincalhão, vim correndo
    para rir, me divertir um pouco, pois as histórias com sogras são intensas, mas não com você!? Isso é ficção? Eu esperava acabar
    lendo, lá no final, um...

    - É brincadeira, pessoal!!

    Fiquei muito confusa, pois li os outros comentários!
    Se for verdade, é triste isso, se for para nos pegar...
    está ótima! 😊🙋‍♀️
    Uma feliz semana, Edu!

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    1. parece tão brincadeira que uns amigos acharam que era....mas não é não.

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  14. Oi, Eduardo! Um relato deveras intrigante, meu caro, que ao mesmo tempo provoca risos e reflexões profundas, dada a sua veracidade inegável. Aquela que é chamada de sogra, uma figura complexa, parece necessitar de um auxílio imediato que não deve ser adiado. Contudo, é imperativo que se considere com atenção o tipo de intervenção a ser empreendida, pois há o risco de que certas abordagens possam, inadvertidamente, intensificar suas dificuldades. Assim, é necessário proceder com uma cautela quase reverente. Desejo que a senhora sua sogra encontre alívio e que a jornada de recuperação seja satisfatória. Ela, sem dúvida, necessita de uma ajuda médica o quanto antes. Abraço!

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    1. já está sendo acompanhada, mas é um problema que não tem volta, é só ir administrando mesmo. Valeu.

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  15. Tempere a situação. Dê a entender que vc quer isso mesmo. "Sogrinha, tá hora...". Ela: "Hora de quê?. "Ah, sei lá... Pensa aí". "Sogrinha, já ouviu falar no poço de piche da Família Dinossauro?"... "Sogrinha, a senhora já viveu tanto...". Enfim: torne a coisa mais dinâmica e divertida.
    Brincadeira à parte, cuidado. Basta ela bater da delegacia e uma viatura te retira de sua casa apenas por ela dizer que vc a olha de forma estranha e que lhe causa um desconforto. Falo sério.
    Abraços

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    1. eu pensei nisso dela ir na polícia, mas minha esposa me tranquilizou dizendo que ela não chegaria a tanto.

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  16. Uma história interessante, com alguns momentos divertidos e outros que nos fazem refletir. Admiro sua paciência. Talvez sua sogra a aprecie algum dia?

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  17. Bom dia, Edu.
    Coisas da vida!
    Gostei imenso da tua crónica e gabo a tua paciência.
    Beijinho e ótimo dia com paz e saúde.😘

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  18. Olá!
    Ótimo artigo e história.

    Você sabia que me interesso pela América Latina?!!! Obrigada por visitar e seguir meu blog. Fico feliz em retribuir a visita!

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  19. Olá Eduardo. Quando vi o título pensei que estivesses a brincar, mas depois vi que o caso é serio. Não desvalorizo o que estás a passar, mas a tua sogra está a sofrer mais porque, de certeza, não está bem e precisa de ajuda. Pelo que li, a vida dela não foi fácil e os traumas ficaram; na idade dela é natural que isso a afete ainda mais, precisando de ajuda rápida. Tens tido paciência e deves continuar a tê-la, Amigo. No Começar de novo, por coincidência, trato dos idosos que, segundo as notícias, além de serem abandonados nos lares, estão a ser agredidos fisicamente pelos próprios filhos, em casa. Com todo este cuidado com a tua sogra, mereces os meus aplausos. Um exemplo que tu aqui dás.
    Beijinhos e continua assim, um ser humano de verdade.
    Emília 🌻 🌻

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  20. Não deve ser fácil, mas o importante é que todo mundo entendeu que ela ela ficou doente.

    Tirando isto, quando estava boa, ela gostava de vc. É o que vale de verdade.

    Eu acho que os traumas da vida, mais cedo ou mais tarde, caem na conta do psicológico de todo mundo. Então, a vida violenta que ele teve na favela, pode ter influenciado nesta esquizofrenia.

    Acho que o que vc pode fazer é tentar conversar mais com ela na presença de outras pessoas para ela voltar a confiar em vc. Acho que pessoas assim, oscilam entre o delírio e a realidade.

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  21. Eu adorei este texto, tem muito a ver com minha adolescência e com meu momento atual (talvez você saiba quem eu sou).

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  22. Chega e ser engraçado, eu lendo aqui. Mas imagino não não deva ser fácil. Muita paciência viu! Até o momento adoro a minha sogra. Rsrs

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  23. Boa noite Edu,
    Uma Crónica sobre um facto real que está atordoando a sua vida!
    Não deve ser nada fácil conviver com uma pessoa assim.
    Nem sei que dizer-lhe, mas a sua sogra precisará de tratament e o Edu de muitaaaaa paciência.
    Um beijinho.
    Emíliaj

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  24. Ainda bem que os gatos não têm sogras. rsrsrsrsrs

    Nova tirinha publicada. 😺

    Abraços 🐾 Garfield Tirinhas Oficial.

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  25. Eduardo que história com a sogra, realmente sempre tem pessoa que escolhe alguém de alvo, e a sogra escolheu você, Eduardo tenha paciência, feliz quinta-feira bjs.

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  26. Edu,
    Então eu sei que essas coisas acontecem.
    Ainda bem que a vida segue sempre e
    que o casal está em acordo e prestando
    atenção. Já fui nora, e lembro como se fosse
    hoje: meu marido e 2 outros amigos faziam
    aniversario em abril, se juntaram pra fazer
    uma comemoração só, na casa de um deles.
    Era bem no começo do meu casamento, uns
    2 anos, no maximo. Como acontece nas celbrações
    de cristãos, há o culto e depois o parabens e
    as considerações. Os anoversariantes combinaram
    que fariam menção as suas esposas e as chamariam
    a frente. Lembro que quando cheguei la na frente
    minha sogra Dona Altina, se levantou, fez uma cara
    feia e simplesmente foi embora! Ela era lider o
    que causou um constrangimento geral. Eu que
    era inesperiente nessa coisa de ser nora, simplesmente
    ignorei. Ela ficou uns meses sem falar comigo direito,
    e era complicado porque além de frequentarmos a mesma
    igreja, éramos vizinhas de quintal. Mas eu sempre fui
    boa de dar tempo ao tempo e não levar nada pro
    coração, como dizem.
    Entendo bem como é complicado ai, ainda mais sendo
    questão de idade e de saúde emocional.
    Mas essas histórias são danadas de boas.
    Bjins e Abraço
    CatiahôAlc.

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Oi. Se leu e gostou,
Obrigado e volte sempre!
Se não gostou, perdoe-me a falta de talento "escriturístico..."