sábado, 9 de agosto de 2025

PINTO CORREU COM MEDO DO GAVIÃO

 


Pinião, Pinião, Pinião

Pinto correu com medo do gavião...


ESTES VERSOS  meu pai cantarolava desde que me entendi por gente. Sempre que estava concentrado em algum serviço, fosse  limpando e capinando nosso quintal, fosse degolando, sangrando e depois depenando uma galinha para o almoço, fosse pintando a casa, tava lá ele cantarolando...


Pinião, Pinião, Pinião

Pinto correu com medo do gavião...


Essa música entrou na minha cabeça por osmose e eu criança ainda, me via repetindo..


Pinião, Pinião, Pinião

Pinto correu com medo do gavião... 


E assim foi durante anos e anos. Mesmo adulto, jamais procurei saber que música era aquela, ou qual era o resto da letra, já que ele sempre cantava só esses versos.


Pinião, Pinião, Pinião

Pinto correu com medo do gavião...


E como quem sai aos seus, não degenera, hoje em dia do nada, me vejo cantarolando...


Pinião, Pinião, Pinião

Pinto correu com medo do gavião...

Até que  ano passado, o Eduardinho que já tinha ouvido antes os versos, me perguntou:

- Mas que música é essa pai? Só fica repetindo pinião, pinião, pinião...

Eu ri. 

- Eu sei lá, edu, é só uma música que seu avô cantava e eu só repito.

- Ah, entendi...(não sei porquê ele sempre repete essa frase em circunstâncias variadas: "ah, entendi.")


Então, depois de quase 50 anos, meu pai já não estando aqui conosco,  resolvi procurar que música era aquela e chamei  o Edu pra me ajudar na empreitada. Comecei problematizando a expressão "pinião". Sugeri que deveria ser algum regionalismo nordestino. (meu pai era baiano). Aí fui pesquisar "pinião" e não encontrei nada. Alguns textos corrigiam a palavra para "pinhão". Mas não era pinhão, era pinião. Foi quando o Edu disse:

- Pinião deve ser só a abreviatura de opinião...

Achei a tese interessante. Fui pesquisar "música com a palavra pinião". Nada. Coloquei os versos completos: 


Pinião, Pinião, Pinião

Pinto correu com medo do gavião...


Então achei uma explicação que corroborava a tese do Edu: em algumas regiões nordestina, alguns diziam "pinião" ao invés de "opinião". No fim, estávamos os dois certos: Significava "opinião" e era realmente uma expressão dialética nordestina.

E apareceu o nome de um tal de AUGUSTO CALHEIROS (que os mais velhos que eu devem ter ouvido falar. Ou não.). Fui ao Youtube e pimba! Lá estava um disco completo de Augusto Calheiros. Mas eu tinha que achar uma música com os versos..

Pinião, Pinião, Pinião

Pinto correu com medo do gavião...


E TINHA!!! Acho que a terceira ou quarta música. Falei um "EUREKA" para o Edu. Depois consegui achar  a letra completa da música.   


Pinião, pinião, pinião

Oi! Pinto correu com medo do gavião

Por isso mesmo o sabiá cantô

Bateu asa e voou e foi comê melão


Essa sumana um gavião lá dos oitero

Chegou lá no meu terreiro biliscando pulo chão

E um pintinho que tava jun'da galinha

Foi correndo na cozinha com medo do gavião


No meu terreiro tinha um pé de araça

Onde um sabiá-gonga fazia seu palantão

Um dia desse ela tava descuidada

Quase morre degolada nas unha do gavião


O gavião é um bicho carniceiro

Quando bate num poleiro come os pinto qu'ele qué

Um dia desse um se trepou lá na mesa

Nunca vi tanta afoiteza, biliscou minha muié


Minha muié se assombrou-se nesse dia 

Quase morre de agonia com uma dô no coração

Gritava tanto com os dois óio abuticado

Até que eu fiquei vexado cum medo do gavião


E é um bicho mais pió do que um cão

Não há muié que se livre do bote do gavião

O gavião quando tá aburrecido

Marca o bote da muié e finda pegando o marido


** * * * * * * * * * * * * * 


Ouçam essa pérola 

do cancioneiro popular brasileiro

que escutei só agora completa 

Pois meu pai só sabia o refrão...

Pinião, pinião, pinião

Pinto correu com medo do gavião...


(não resisti a fazer esse versinho...)






E claro que ao ler a letra, Eduardinho foi logo dizendo:
- MEU DEUS, QUE LETRA DE DUPLO SENTIDO É ESSA???

Novamente, tive que rir. 

Olha o gavião, gavião, gavião...


******************************************


Augusto Calheiros, cantor e compositor, nascem em Maceió, AL, em 5/6/1891 e morreu no Rio de Janeiro no dia 11/1/1956. Descendente de índios, nasceu numa família com boa situação financeira. Aos nove anos porém, começou a passar dificuldades. Transferiu-se rapazola para Garanhuns. Ali trabalhou como dono de bar, fabricante de sapatos, hoteleiro, subdelegado e até carcereiro. Paralelamente levava sua vida musical cantando nos cinemas locais. 

Em 1923 foi para Recife, PE, onde começa a cantar na recém inaugurada (1923) e segunda rádio transmissora brasileira, Rádio Clube de Pernambuco. Em 1926 faz parte da formação original do conjunto vocal Turunas da Mauricéia. O conjunto segue ao Rio de Janeiro em 1927.
Calheiros, a partir de 1929, fez também carreira solo, mantendo um estilo próprio cantando músicas sertanejas.

No auge de sua popularidade, dividindo com Jararaca e Ratinho, Dercy Gonçalves, Arthur Costa e outros, cantava na Casa de Caboclo, famosa casa de espetáculo inaugurada em 1932, localizada na Praça Tiradentes, onde era divulgada a música regional brasileira.
Em 1936, cantou no filme Maria Bonita, da Sonoarte. Ao todo gravou 80 discos 78 rpm com 154 músicas.

Em 1955 destacou-se no Segundo Festival da Velha Guarda de São Paulo, organizado por Almirante. 
No início de 1956, Augusto Calheiros faleceu deixando uma única filha, Cleide.
"A Patativa do Norte" (ou nordeste) , apelido que recebeu por tão bem cantar. 


SE QUISER OUVIR O DISCO COMPLETO,

20 comentários:

  1. Que legal isso,Edu! As memórias ficam pra sempre registradas e há palavras que nos remetem aos nossos pais.
    Ele deve ter adorado, de onde está, ver tua pesquisa e "pinião"...rs..

    Feliz dia dos pais!
    abraços praianos, chica

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  2. Olá Eduardo Medeiros.
    Uma boa crônica.
    Não conhecia a canção e nem o cancioneiro.
    Toda canção tem o seu sentido.
    Bom final de semana e gratidão pela visita.
    "Perigo é constante na vida, a vigilância e a proteção são necessárias para manter a segurança e a paz."

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  3. Eduardo, que delícia de crônica! É incrível como certas frases ou cantigas grudam na memória sem que a gente perceba, como se fossem heranças invisíveis que passam de pai para filho. Ri alto com o “EUREKA” e com a reação do Eduardinho à letra completa porque sempre chega aquele momento em que o significado aparece e, junto, a surpresa (ou o susto) com o que realmente estava sendo cantado. Você transformou uma lembrança simples numa viagem cheia de afeto, curiosidade e gargalhadas.

    Abraço
    Fernanda

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  4. A tua crónica tocou-me o coração — é impressionante como versos simples, herdados do quotidiano, se transformam em memórias vivas e cheias de significado. A tua busca pela música perdida, a descoberta e a cumplicidade com o Eduardinho tornaram esta história um verdadeiro abraço na alma. Obrigada por partilhares tanto afeto e humor.

    Com amor,
    Daniela Silva 🩷🦋
    alma-leveblog.blogspot.com — espero pela tua visita no blog

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  5. Meu caro Edu, sou obrigado a dizer que - PROVAVELMENTE - esses versos foram apenas aproveitados pelo compositor e que sua origem se perca no tempo e na época de brincadeiras ingênuas. E digo por quê. Nasci em BH, Minas Gerais. Quando eu era criança, lá pelos sete anos (1957), minha mãe brincava comigo dizendo esses versos, mas beliscando suavemente a pele da minha mão. Eu então beliscava a dela e isso se repetia alternadamente com as outras mãos, como se um gavião estivesse segurando a sua presa. As quatro mãos presas umas às outras eram balançadas e soltas simultaneamente. Qual a graça disso? Nenhuma, mas sua origem talvez se perca nos séculos pós descobrimento.

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    1. vejam só...é possível. Lembro que na minha infância também tinha uma brincadeira assim de ir beliscando as mãos mas com outra modinha.

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  6. A internet é um assombro , basta determinação e achamos tudo que procuramos, e foi feliz na procura do pinião (essa nossa diversidade de opinião ) , só fico pensando como poderiam cantar com aquele dialeto rsrs brincadeira à parte achei mesmo genial a letra completa e a descoberta do cantor alagoano, Edu .
    Um texto que li e reli e gosto dessa cumplicidade com o filhote.
    Abraço

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  7. Olá grande Eduardo! Que espetáculo de resgate cultural! 😄
    Surpreendido com o duplo sentido e a descoberta da obra completa de Augusto Calheiros.
    Além do humor, trouxe-nos uma pequena aula de história da música brasileira, mostrando quem foi “A Patativa do Norte” e a sua importância para o cancioneiro popular. Mais um texto seu que me fez rir, aprender e cantarolar! 😁 Forte abraço!

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  8. Grata por esse relato. Encheu meu ❤️
    Virei mais vezes

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  9. Uma investigação que deu os seus frutos.
    Ouvi toda a canção e gostei, apesar de musicalmente ser muito simples. Mas o cancioneiro popular é assim mesmo em todo o mundo.
    Obrigado pela partilha.
    Tenha uma ótima semana.
    Um abraço.

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  10. A internet é um mundo particular que achamos de tudo. Que bom que achou a música e ela completa.

    Boa semana!

    O JOVEM JORNALISTA está em HIATUS DE INVERNO do dia 04 de agosto à 08 de setembro, mas comentarei nos blogs amigos nesse período. O JJ, portanto, está cheio de posts legais e interessantes. Não deixe de conferir!

    Jovem Jornalista
    Instagram

    Até mais, Emerson Garcia

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  11. Ola Eduardo,
    Gostei muito, pois não conhecia o Augusto Calheiros. É sempre bom hoje podermos procurar historias e curiosidades pois a internet descobre tudo.
    Valeu por compartilhar,
    feliz dia

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  12. Muito interessante, obrigada pela partilha!

    PS: Gostava muito de te convidar a ler o meu ebook gratuito sobre organização e produtividade pessoal, podes pedir já o teu através deste link

    Bjxxx,
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  13. Gostei da história.
    Tem coisa que a gente passa a vida inteira fazendo e nunca se pergunta o por quê.
    Se não fosse seu filho, vc ia morrer sem saber o que estava cantando...

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  14. Adorei a história!!! E há canções que a gente nunca esquece.

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  15. Que pesquisa fantástica Edu! Você e seu filho poderiam se tornar historiadores, pois trouxeram uma cultura divina que estava esquecida no tempo... "Augusto Calheiros", não tinha nem ideia deste cantor e desta música tão rica. Assim que comecei a ouvir a canção, me veio à memória músicas que Vovô Gervásio ouvia muito antigamente em seu simples rádio de pilha. Muitas tinham essa introdução, esse arranjo tão especial , o coro de vozes no bis que resgatou em mim uma memória muito antiga. INCRÍVEL!!!
    Seu filho foi muito sagaz ao repercutir o "duplo sentido" da música!
    Parabéns aos dois, que resgate surpreendente!!
    Maravilhosa semana!! :)))))

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  16. rsrsrsrs, você é perseverante, Edu!
    Vi o vídeo, que lindinha a música e letra.
    E encontrou a letra bem direitinho, isso
    é muito bom, sou mais ou menos assim,
    não me entrego para a a desistência,
    também vou até o esgotamento tentando
    me lembrar das coisas!
    rsrs, bravo!
    Uma ótima semana!
    Abraços

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  17. Que texto fantástico , eduardo . Vc resgatou amemória de seu pai juntamente com a música . E o legal de tudo isso é tb a participação de seu filho . As histórias em família precisam mesmo ser resgatadas . Gostei de sua insistência . Eu tb sou assim e se tem alguma palavra resgatada do tempo de minha mãe , ou seja , na infãncia , vou logo buscar a origem . Abraços
    meu link
    https://kantinhodasmensagens.blogspot.com

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  18. De início, pensei ser algo sobre o pintinho correndo e um galo gritando: "encosta o cu na parede". E o pinto: "não adianta, ele quer que eu chupe".
    Ouvindo agora no Youtube. Adorei! Meio baião, meio forró... Gosto do gênero.
    Abraços

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  19. Edu, que relato bacana! Eu já conhecia alguma coisa do Augusto Calheiros, mas confesso que não essa música completa, só uns trechos soltos. É incrível como essas cantigas atravessam gerações e carregam memórias tão vivas. Gostei demais de ver você resgatando essa história com o Eduardinho.

    Abração, bom sábado.
    Dan

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