Estou terminando de ler o livro A Insustentável Leveza do Ser de Milan Kundera. A história se passa nos anos 60 em uma Checoslováquia governada por uma ditadura comunista. Um dos personagens, Tomas, confrontando o governo e o povo, escreve um artigo onde argumenta que costumamos dar desculpas para não fazermos nada em relação ao arbítrio. Que os comunistas fecharam os olhos para as atrocidades do regime porque o culpado foi Stalin. Que o assassino procura se desculpar pelos seus crimes, dizendo que a culpa foi da família, da mãe, que não lhe deu a devida atenção e amor quando criança. E então ele dá o exemplo de Édipo como alguém que apesar de ser inocente, não deixou de reconhecer o próprio erro.
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Conforme nos conta Sófocles, Édipo era filho de Laio e Jocasta, rei e rainha da cidade de Tebas. O casal recebe uma profecia do Oráculo de Delfos que dizia respeito ao destino do filho. A profecia trágica era: Édipo matará o próprio pai e se casará com a mãe. Assustados, Laio e Jocasta entregam o filho para um servo para que ele o mate para que a desgraça profética não aconteça.
Porém, o servo fica com pena do garoto e deixa-o pendurado pelo pé em uma árvore. Logo ele é encontrado por um camponês, que o leva para a cidade de Corinto, e lá ele é adotado por Pólibo e Mérope, rei e rainha dessa cidade. Édipo cresce então acreditando ser filho biológico deles.
Passa o tempo...
Anos depois, Édipo vai ao oráculo de Delfos e recebe a mesma profecia que seus pais receberam anos atrás: ele será o responsável por matar o próprio pai e desposar a própria mãe. Para fugir de seu destino, Édipo sai de Corinto e se muda para Tebas, mal sabendo ele que está indo ao encontro da concretização da profecia...
No caminho de Tebas, ele encontra seu pai, Laio(evidentemente sem saber que era seu verdadeiro pai) e um servo, ambos indo ao oráculo de Delfos, pois Laio estava preocupado com alguns presságios de que a profecia recebida anos antes, estava para se concretizar.
Acontece uma discussão entre Laio e Édipo, pois este está atrapalhando seu caminho e acaba lhe agredindo. Édipo fica enfurecido com a agressão e assassina Laio e seu servo. Sem saber, Édipo mata o próprio pai.
O Destino é implacável...
Quando Édipo chega a Tebas, encontra a cidade sendo atacada pela esfinge, um ser monstruoso que apresenta um enigma a todos os viajantes que chegam lá. Os que não sabem a resposta do enigma são mortos por ela.
Édipo consegue desvendar o enigma da esfinge, e esta, envergonhada, comete suicídio ao lançar-se em um precipício. A população de Tebas fica profundamente grata por Édipo libertar a cidade daquele monstro e em gratidão, oferece a ele o trono da cidade e a mão da viúva rainha Jocasta(sua mãe!) em casamento. Édipo aceita tanto o trono quanto o casamento, tornando-se rei de Tebas e marido de sua própria mãe, tendo com ela quatro filhos, chamados Etéocles, Ismênia, Antígona e Polinices.
Anos depois, uma praga atinge Tebas, e Édipo procura ajuda de adivinhos para conseguir livrar sua cidade desse mal. Um adivinho chamado Tirésias desvenda a verdade a Édipo e conta que este é o responsável pela tragédia que afeta seu reino. (uma história bem parecida com a tragédia bíblica de Jonas).
É quando Édipo e Jocasta entendem o que aconteceu. Jocasta, em profundo desespero, tira a própria vida. Édipo ordena que ela receba um funeral digno, abdica o trono de Tebas e passa a vagar como um mendigo.
A vergonha de Édipo.
Édipo e Jocasta fizeram certo ao se autocondenarem mesmo sendo inocentes, pois todos foram vítimas da roda do Destino?
No livro citado no início, Milan Kundera faz seu personagem Tomas defender a atitude de Édipo, proclamando ao povo tcheco a fazer o mesmo e não impor a outros a culpa pela sua omissão. Mesmo sendo inocente ao cumprir a profecia, Édipo fez o certo em autocondenar-se e não colocar apenas a culpa na profecia.
Porém, tempos depois, ativistas procuram Tomas para que ele assine um manifesto criticando as prisões arbitrárias que o governo fazia contra intelectuais que criticavam o regime. Tomas, porém, tinha sido destituído da sua função de médico pelo governo exatamente pelo texto que ele publicara anteriormente onde citava o exemplo de Édipo. Tomas agora era apenas um simples limpador de janelas e não quer mais assinar manifestos.
Ele já foi perseguido pelo governo, não podia mais medicar e agora ponderava porque Édipo deveria se autopunir por um crime que cometeu inocentemente? Agora, Tomas diz que fazer isso seria algo bárbaro. Porque ele deveria se por em risco novamente sabendo que poderia ser castigado de uma forma ainda pior?
Mas Tomas não se sente confortável com sua atitude. Ele foi covarde? Ele já não sabe se deveria ou não ter assinado o manifesto. É justo levantar a voz quando se tenta reduzir um homem ao silêncio? SIM. Mas não era exatamente isso que o governo queria? Que ele assinasse para poder puni-lo outra vez?
E então o autor faz Tomas elucubrar sobre a questão: Será melhor gritar e precipitar o próprio fim, ou calar-se e barganhar uma agonia mais lenta?
Existirá uma só resposta para essas perguntas?
Édipo foi justo consigo mesmo ou cometeu uma barbárie contra si mesmo?
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Eita Dudualdo, essa postagem está muito boa!
ResponderExcluirE a resposta é: A pessoa não deve jusrificar seus erros pelas atitudes de outras pessoas desque que não seja a gente.
Kkkkkkkkkkkkkkk.
Tô brincando.
Sabe, no caso do Édipo o assunto é complicado, porque tanto os pais, quanto ele, tentaram contornar a profecia e fazer a coisa certa, mas não deu.
Mas vou dar um exemplo aqui, que pode dar pano pra manga.
Mas tem muita gente que não cresce na vida, dizendo que a culpa é porque seus bisavós eram escravos, ou porque seus país eram analfabetos, ou porque sua mãe era alcoólatra, ou porque foi criado na favela e por aí vai.
E a pessoa não assume que a culpa do seu fracasso é dele mesmo.
Essa questão é muito complicada.
Porque alguns vão falar que eu ainda não tenho amor ao próximo ou sensibilidade social.
Problema!!!!
Eita!
ExcluirAndré, fiquei pensativa rsrsrs. tua resposta me arrancou risos e rugas de reflexão. A forma leve como você começa
(“desde que não seja a gente” rs) prepara o terreno pra uma provocação real, que vale o debate: até onde vai a responsabilidade pessoal, e até onde pesa a herança, o contexto, a história?
Exatamente!! Desde que não seja a gente!
ExcluirSabe o que mais buga a cachola? Édipo poderia ter fugido do seu destino? Acho que não. Tudo o que somos hoje é resultado de ações, escolhas, decisões, que tomamos ao longo da vida e que não poderíamos tomar outras naquele momento. O acaso é só uma rede intrincada de ações determinadas por vários fatores que nós não percebemos. Temos a ilusão de sermos "livres".
Logo, não acredito que todos podemos "chegar lá" vindo de qualquer lugar. Todos chegarão onde terão que chegar. O seu patamar jamais poderia ser o meu e vice-versa. Mas então estou dizendo que um assassino profissional não poderia ser outra coisa e por isso não deveria ser culpado pelos seus atos? Sim e não. Estou dizendo que ele é o que é, porém, o que ele é não o exime de culpa pelo que se é, porque no caso, o que ele é prejudica toda a sociedade onde ele tem que viver.
ExcluirEduardo, é aí que o nó aperta: essa tal “liberdade” que tanto defendemos pode ser só um palco bem iluminado para as decisões que já estavam escritas nos bastidores.
ExcluirPenso, a gente escolhe, sim… mas dentro de um cardápio que o destino já deixou pronto. E Édipo? Talvez não tivesse como escapar. Quanto mais fugia, mais se encontrava com o inevitável. Parece exagero trágico, mas tem dia que a vida da gente também é assim uma sequência de repetições que achamos inéditas. E no fim, o que nos resta é a consciência: tentar, ao menos, não terceirizar culpa nem romantizar controle. Ou seja: somos meio livres, meio empurrados. Meio autores, meio personagens.
O que não dá é fingir que está tudo nas nossas mãos… mas também não vale deixar tudo nas mãos do destino. O equilíbrio, talvez, seja aceitar a dúvida como parte do caminho.
Eduardo, teu raciocínio provoca, e isso é ótimo. Concordo contigo em partes especialmente quando diz que nem todos chegarão ao mesmo lugar, e que cada um está
Excluircondicionado por fatores que, muitas vezes, escapam à própria vontade. Somos um amontoado de heranças, contextos, traumas, sorte, escolhas e ausências.
Mas aí entra o ponto delicado: até que ponto podemos responsabilizar alguém por “ser o que é”? E até que ponto o livre-arbítrio é de fato livre? Acho que, como você bem colocou, não se trata de inocentar, mas de compreender. A culpa pode até permanecer, mas a compreensão nos afasta do julgamento raso.
Somos, sim, resultado de muitas coisas mas também somos ligação entre o que herdamos e o que escolhemos perpetuar. Talvez a ética esteja aí: em perceber que, mesmo limitados, ainda somos capazes de frear o que fere.
No fim das contas, ninguém é totalmente livre, mas também ninguém é totalmente prisioneiro.
É só o que penso.
Fernanda, não espero respostas definitivas para questões tão complexas...rs
ExcluirObrigado pela contribuição com suas análises sempre pertinentes.
Uau!!! 😧
ResponderExcluirEduardo, tua crônica mergulha com uma densidade rara naquelas perguntas que não se respondem com pressa nem talvez com palavras. O diálogo entre Kundera, Édipo e Tomas é um refletir múltiplo de nós mesmos diante das nossas omissões, covardias e também dos excessos de culpa que carregamos, mesmo sem dolo.
O que me tocou especialmente foi essa tensão entre justiça e autopunição. Até que ponto assumir a responsabilidade é um gesto ético, e quando passa a ser apenas um sacrifício cruel, quase inútil? Penso que: Édipo se cegando por um crime que não sabia estar cometendo pode ser visto como um ato de coragem moral, mas também como um grito desesperado diante da impotência humana frente ao destino. E Tomas, mais moderno, mais nu, carrega o dilema da sobrevivência: vale a pena ser íntegro se o custo for o apagamento total? Ou o silêncio é também uma forma de resistência, ainda que amarga? Me parece que ambos Tomas e Édipo não escapam de uma dor profunda, porque talvez não exista saída limpa quando o mundo à nossa volta está sujo. E é isso que tua crônica toca com maestria: a ferida de quem tenta ser inteiro num tempo que exige partes. Agradeço por provocar essa reflexão tão necessária. Porque no fundo, como você bem diz… talvez não exista mesmo uma única resposta. Mas escrever e pensar sobre isso já é, por si, uma forma de não consentir com o silêncio.
Amei a forma como você entrelaça a tragédia grega com o contexto de político de Kundera é além de brilhante, profundamente humano. Porque no fim das contas, estamos todos um pouco como Tomas tentando sobreviver num mundo onde a coerência às vezes parece ser um luxo. E, ao mesmo tempo, somos também um pouco Édipo, nos debatendo entre a vergonha e a dignidade, entre o erro involuntário e a necessidade de reparação.
Quando você pergunta se Édipo foi justo consigo ou cometeu uma barbárie contra si mesmo, me vi pensando nas vezes em que fomos duros demais conosco por algo que nem sabíamos estar fazendo “errado”. E nas vezes em que calamos para não perder tudo e depois ficamos em silêncio dentro de nós também, tentando entender se foi covardia ou apenas autopreservação.
A imagem de Tomas limpando janelas depois de ter sido médico me comoveu. Ele que antes via por dentro, agora cuida da superfície. Mas nem por isso deixou de pensar, de sentir, de duvidar. E talvez seja aí que mora a profundidade dessa história no fato de que não há resposta certa, e sim perguntas que nos mantêm vivos. No fim, tua crônica nos leva a essa pergunta-lâmina: é melhor gritar e precipitar o próprio fim ou calar e barganhar uma agonia mais lenta?
Não sei amigo. Mas agradeço por me lembrar que essa pergunta ainda importa. E que escrever como você faz talvez seja um terceiro caminho: nem gritar, nem calar… mas resistir. Obrigada por esse texto. Que inspirou outro em forma de comentário.
Me desculpe, não consigo comentar sem entrar nos detalhes do meu pensamento .
Seu texto…
Ele ainda grita em mim.
Abraço
Fernanda
Fernanda, acho que vou anexar seu comentário ao meu texto, ficará mais completo...rs
ExcluirVocê cita aquilo que eu penso: "...mas também como um grito desesperado diante da impotência humana frente ao destino..."
Édipo é exatamente isso. Um homem brigando com seu destino. E se é destino, não poderia ser diferente! Você não poderia ser diferente do que é, nem eu, nem ninguém. Até mesmo quando aparentemente mudamos de opinião, postura, caráter, apenas nos adequamos ao nosso verdadeiro destino que estava andando certo por linhas tortas.
É como o grito que Nietzsche quer que todos ouçam: "torna-te aquilo que és".
Eduardo, agora quem vai ter que pedir desculpas de novo sou eu por ocupar tanto espaço lá no outro comentário… rsrs. Mas sua escrita provoca tanto que não dá pra responder com uma frase só. Cada parágrafo teu acende mais uma fresta dentro da gente.
ExcluirE olha, esse trecho teu agora me arrepiou: “mesmo quando mudamos, apenas nos adequamos ao verdadeiro destino que estava andando certo por linhas tortas.” É isso. A gente vive achando que virou à esquerda por escolha, mas talvez o caminho já estivesse desenhado a curva já era curva, e a gente só acompanhou o traço.
Nietzsche ecoa fundo nisso. “Torna-te aquilo que és” não é convite leve é chamado bruto. Como se dissesse: para de fugir do que já está aí dentro. E Édipo, nesse sentido, não é só personagem: é reflexo de todos que tentam domar o incontrolável com boas intenções e acabam tropeçando na própria sombra. Mas talvez o verdadeiro heroísmo seja esse: continuar buscando sentido, mesmo sabendo que a linha já pode estar escrita e que mesmo assim, vale a pena vivê-la.
Obrigada por sempre fazer pensar.
E pode excluir amigo 😊 esteja a vontade😊
Mais uma vez, desculpa!
Mas desculpar por quê??? Por enriquecer o tema? Ora, escreva quanto quiser!
ExcluirOi Edu, tudo bem? Enquanto lia a sua crônica só conseguia pensar na série Dark, que estou terminando de assistir. Estou cada vez mais convencida que toda vez que um ser humano tem acesso a uma profecia, ou viaja no tempo e descobre algo relacionado ao seu futuro (ou da humanidade), acaba por fazer o mesmo acontecer. Se Voldemort não tivesse ido atrás de Harry para tentar evitar seu desfecho fatal, ele teria se salvado e evitado que a profecia se concretizasse?
ResponderExcluirAté breve;
Helaina (Escritora || Blogueira)
https://hipercriativa.blogspot.com (Livros, filmes e séries)
https://universo-invisivel.blogspot.com (Contos, crônicas e afins)
Oi, Helaina.
ExcluirDark é muito punk! Inclusive, estou revendo esta série pois é uma das minhas favoritas. Não conheço bem o universo do Potter mas acho que entendi a sua colocação. E aí ficará a questão: se concretizaria ou não?
Olá Eduardo Medeiros.
ResponderExcluirQue história, seria engraçado se não fosse trágico.
Ele não sabia que a rainha era ninguém mais, ninguém menos, do que sua mãe. Desta forma, a profecia se cumpriu.
Mesmo com esforços para evitá-lo, certos acontecimentos são inevitáveis.
O destino se cumpriu.
Bom domingo.
Não me estenderei muito sobre o que muitos já fizeram, apenas creio que a liberdade real está na mente, está na descrença do que cada um recebeu como verdade ou obrigação. Você pode estar vergado pelo peso dos acontecimentos e, ainda assim, ter o pensamento livre. Essa liberdade é como viver em sozinho em outro planeta, tem o preço da solidão intelectual. Mas já disse muito.
ResponderExcluirOlha, estava indo por um caminho interessante....desenvolva aqui ou em um post no seu blog.
ExcluirA mitologia é mãe dos exageros. E muitos autores exageram bem baseados nela. rsrsrsrs
ResponderExcluirNova tirinha publicada.
Abraços 🐾 Garfield Tirinhas.
Eu diria que a mitologia é mãe de toda ciência e toda psicanálise...rs
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