(crônica de RAQUEL DE QUEIROZ de 17/11/1990)
O QUE ME DIZEM com mais frequência é: "oitenta anos, quem me dera, com tanta vitalidade!". E a verdade é que não estou com essa bola toda, tenho lá meus achaques, vários. Em todo caso é mesmo um milagre de durabilidade este nosso corpo humano. Uma combinação aparentemente precária de músculos, ossos, nervos, vísceras, pele, que tinha tudo para não dar certo, e no entanto funciona ininterruptamente durante 80, 90, e às vezes passando dos 100 anos! As pernas, ainda serviçais, 80 anos cada uma! O sofrido coração, quantas vezes terá batido - milhões, bilhões de vezes? - nestas oito décadas sem interrupções, sem fadiga, tum-tum, tum-tum, consciencioso, fiel? E os pulmões, tocando os seus foles, na batida do coração, querendo competir com ele. E a cabeça meio louca, coitada, fazendo o que pode.
Um aparelho de TV é cem mil vezes menos complicado e vive dando prego. Mas o corpo da gente não. Trasteja, bate pino, se fere, enfrenta micróbio, fratura, desgaste, mas vai em frente. É mesmo um prodígio. Mas como dói" Aliás, a dor é o seu melhor sinal de vida. Só não dói depois de morto. Dói por dentro, dói por fora, emite invisíveis antenas por todo ele, procurando captar a dor - ou as dores.
E a alma? Embora muitos não acreditemos que ele seja movido a alma, como dói, ah, como dói também essa controvertida essência do corpo!
Pois todo esse inventário de obstinações e misérias somos nós, com os nossos 80 anos de vida. Se empurrando, se medindo, lutando acordado ou dormindo para não parar de repente, pra não perder o famoso lugar ao sol. Gritando pra ser notado. Pente fiel de rebanho ao mesmo tempo fazendo coisas incríveis para marcar uma identidade pessoal, um destaque. Uma superioridade!
Quem quiser que goste. Eu não. Nunca fui fanática por esse ciclo de prantos e lutas que começa num grito de choro e termina num suspiro. O temido último suspiro. Embora a gente se iluda, pensando que monitora o próprio destino e comanda as suas ambições, na verdade somos um engenhoso, um resistente robô que Deus cria e apaga não se sabe por quê. Nem pra quê. A gente nasce sem ter ideia disso e em geral morre quando não espera ou quando não deseja. Se vinga das partidas do destino gerando filhos que perpetuem a nossa passagem, com um nome, memórias, amor e saudade. Tudo absolutamente ilusório, mas já é um lugar-comum dizer que a vida, suas glórias, suas conquistas, sua bravura e miséria, é tudo uma ilusão.
A gente vive um sonho de carne e osso que acaba no acordar que é a morte.
É isso aí.
Aos que me festejaram, abraçaram, felicitaram, telefonaram, escreveram, telegrafaram, agradeço de coração as palavras de carinho e de solidariedade. E, principalmente, peço perdão por este desabafo meio incoerente.
Mas, eu tinha o direito a ele. Afinal, fui eu que fiz 80 anos!
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A escritora Rachel de Queiroz morreu em 4 de novembro de 2003, aos 92 anos, no Rio de Janeiro. Ela é considerada uma das vozes mais importantes da literatura brasileira do século XX e uma das maiores autoras da segunda geração modernista no Brasil. Autora de destaque na ficção social nordestina, foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, em 1977.
A trajetória de Rachel de Queiroz na literatura começou cedo, quando ainda era adolescente, com a publicação de seu primeiro romance, "O Quinze", em 1930. O livro trata da seca no Nordeste brasileiro e suas consequências sociais, e é um retrato contundente das condições de vida na região. Com essa obra, Rachel ficou nacionalmente conhecida, conquistando um lugar de destaque na literatura brasileira.
Sou muito fã de tudo que Raquel escreveu, suas crônicas e romances. E para mim, seu romance Memorial de Maria Moura é uma obra-prima.
Linda a crônica da Rachel !
ResponderExcluirFazer 80 anos é uma alegria, mas por outro lado, tantos problemas aparecem...Estou com 76 e estou muito bem, até ir ao médico!rs...
abraços, chica
Um belo texto. Temos muitas Rachéis hoje em dia, mas poucos para lerem-nas. Que bom que ela conseguiu publicar suas obras. Que tenha cada vez mais gente lendo Rachel.
ResponderExcluirSobre o assunto da crônica dela. Hoje não estou em um bom dia para assimilar bem. Talvez eu escreva a respeito no meu blog. Sobre o cansaço de existir e ser obrigado a continuar existindo. Amanhã, talvez.
Oi, Edu.
ResponderExcluirUma escritora admirável! Com uma história de vida sofrida e admirável também. Dela eu já li apenas algumas crônicas, mas tenho desejo expresso de ler os seus romances, entre eles o mencionado na sua postagem O Quinze.
Que postagem sensacional!
Amanhã um tio materno meu, que foi o primeiro filho dos meus avós, completará 80 anos de idade. Nós da família estamos muito felizes por ele chegar a essa idade, que os meus avós, pais dele, infeliz e certamente não chegaram; a mãe dele e da minha mãe mesmo faleceu no parto da minha mãe 62 anos atrás. Enfim, é uma idade pra se comemorar porque muitos não conseguem chegar lá.
Bom fim de semana! 💐🎈
Confesso só ter lido uma ou outra de suas crônicas, mas gosto muito de uma frase sobre o ato de viver: "Doer, dói sempre. Só não dói depois de morto. Porque a vida toda é um doer".
ResponderExcluirLeia Memorial de Maria Moura
ExcluirOi, Edu, que crônica, maravilhosa!!
ResponderExcluirJá pensei em algumas coisas sobre o assunto, mas essa é
uma das mais lindas crônicas que li dela.
Ela, a crônica, nos leva a pensar em muitas coisas. E no final
a gente pensa...Deus é nosso amigo?
Por que temos de sentir dor? Por que temos de morrer em uns parcos
anos de vida? Por que sofrem e morrem as crianças - pobres inocentes?
Há um erro nessa criação, rssss. (brincadeira).
Gostei imensamente de ler essa crônica, Edu.
Um feliz domingo!
Abraço.
Caro, Eduardo, sinceramente, não sou fã ardorosa dela, mas sei da fama de "O Quinze" quando tinha aulas de Literatura. Jeito lindo dela reconhecer o prêmio de uma vida longa quando ela diz que tinha o direito ao desabafo. Talvez eu devesse conhecer algumas obras dela, principalmente a que vc sugere. Meu abraço e semana ótima!
ResponderExcluirQue crónica excelente, esta, da escritora Rachel de Queiroz. Sem dúvida não importa o tempo que vivemos, mas sim a qualidade com que vivemos esse tempo.
ResponderExcluirUma boa semana.
Um beijo.
Há animais, também complicados, que vivem mais de 300 anos... Por isso, ainda não estamos no topo...
ResponderExcluirUm texto muito interessante que gostei de ler, obrigado pela partilha.
Boa semana.
Um abraço.
Dudualdo, a gente ainda tem chão pra chegar nos 80!
ResponderExcluirEu na verdade, acho que nem precisa tanto. Pra mim, uns 70 já está de bom tamanho. Até demais!
Eu falo pra minha esposa que vou até os 65 mais ou menos e ela fica brava e quase me mata antes, kkkkkkkkkkkkk.
Acho que o importante é a gennte não deixar o rabo preso.
Fazer o melhor que puder todos os dias, com todas as pessoas que convivermos, e assim, partir feliz.
Dudualdo, se você é um resolvedor de problemas na sua família, não se avexe, quando chegar a hora, pode ir tranquilim.
Eles vão sentir sua falta pra resolver os problemas no primeiro mês, no segundo talvez e no terceiro já vão estar craques.
Seus netos não vão saber seu nome inteiro, os bisnetos não vão saber seu primeiro nome e os tataranetos nem vão saber que existiu.
Ainda bemq ue a Rachel de Queiroz deixaou ul legado imortal, mas até ela está caindo no esquecimento, assim como o poeta que escreveu Caneta azul, azul caneta!
Um abraço meu amigo!
Olá, amigo Edu, uma excelente partilha da nossa Rachel de Queiroz,
ResponderExcluiressa excelente cronista, contista e romancista. Ela ocupou uma Cadeira
na Academia Brasileira de Letras por incontestável mérito.
Uma ótima semana, saúde e paz.
Grande abraço.
Boa tarde Eduardo. Obrigado por dividir sua estória comigo. Eu nasci no Hospital Promater na Praça Mauá. Quando era bebê, morei na favela de Parada de Lucas. Meu avô em Minas Gerais, perdeu um pulmão quando eu tinha uns 3 ou 4 anos. Fiquei uns dias na casa da irmã do meu pai, no Jardim América. Depois uma grande parte da minha vida foi na Tijuca. Nasci num lar evangélico da Igreja Batista. As igrejas que eu falei, fazem parte da história da minha família. Meus pais casaram em 1966, sempre ia desde criança na Igreja Batista Itacuruçá e na 1a Igreja Batista Biblica do Rio de Janeiro, eu era da Igreja Batista da Usina e fui batizado aos 10 anos na Igreja Batista Memorial da Tijuca. Meu Ensino Fundamental, fora em colégios da Tijuca. Araújo Porto Alegre, na Usina (sub-bairro da Tijuca), Soares Pereira (na Praça Xavier de Brito, a Praça dos Cavalinhos) e no Orsina da Fonseca (metrô São Francisco Xavier) e uma parte do Ensino Médio no Colégio Ferreira Viana, perto do Colégio Militar. Ei ia da Saens Peña, para o Maracanã a pé. O Alto da Boa Vista é o Parque Nacional da Tijuca, eram meu quintal. Teclamos tanto tempo, nem sabia que você tinha, também tanta ligação com a Tijuca e nem a sua área de trabalho. Vamos combinar um dia um suco e um aperto de mão.
ResponderExcluirQuis mostrar que a Tijuca, todas as religiões podem conviver e bem. Fui uma volta ao meu passado, minha estória e a pessoa que hoje eu sou. Perdão pelos erros no outro texto.
ResponderExcluirEu sou carioca e você tijucano. Tema da próxima matéria.
ResponderExcluirQue espetáculo Edu! Um presente ler Raquel de Queiroz, quanto talento e criatividade.
ResponderExcluirRomancista de primeira, com obras que se perpetuam no tempo e nos deixam boquiabertas pela qualidade literária.
O texto de Raquel me fez pensar no meu pai que está com 86 anos e o coração dele rateando aos poucos. Descobrimos apenas agora, com a idade avançada, que ele tem um sério problema coronário e que seu coração agora está batendo à custa de muitos medicamentos, exames e cirurgias constantes. O corpo humano é mesmo algo misteriosos amigo. E seguimos no tratamento para poder chegar aos 90, se Deus quiser!!
Grata pelo lindo artigo e uma semana maravilhosa!! Se cuida para chegar bem aos 90!!!!
Edu,
ResponderExcluirAmo Raquel e foi uma
de minhas primeiras leituras
na adolescência.
Lembro de um relato dela
de que a noite, ela lia escondido
pois havia pouco iluminação na casa
e os pais cuidavam para que
não se forçasse os olhos
lendo com pouco claridade,
mas ela lia escondido msmo assim.
Adorei mais essa publicação.
Bjins
CatiahôAlc.