Clube de Detetives Pão de Queijo

sexta-feira, 21 de março de 2025

Fazer 80 anos

 


(crônica de RAQUEL DE QUEIROZ de 17/11/1990)


O QUE ME DIZEM com mais frequência é: "oitenta anos, quem me dera, com tanta vitalidade!". E a verdade é que não estou com essa bola toda, tenho lá meus achaques, vários. Em todo caso é mesmo um milagre de durabilidade este nosso corpo humano. Uma combinação aparentemente precária de músculos, ossos, nervos, vísceras, pele, que tinha tudo para não dar certo, e no entanto funciona ininterruptamente durante 80, 90, e às vezes passando dos 100 anos! As pernas, ainda serviçais, 80 anos cada uma! O sofrido coração, quantas vezes terá batido - milhões, bilhões de vezes? - nestas oito décadas sem interrupções, sem fadiga, tum-tum, tum-tum, consciencioso, fiel? E os pulmões, tocando os seus foles, na batida do coração, querendo competir com ele. E a cabeça meio louca, coitada, fazendo o que pode.

Um aparelho de TV é cem mil vezes menos complicado e vive dando prego. Mas o corpo da gente não. Trasteja, bate pino, se fere, enfrenta micróbio, fratura, desgaste, mas vai em frente. É mesmo um prodígio. Mas como dói" Aliás, a dor é o seu melhor sinal de vida. Só não dói depois de morto. Dói por dentro, dói por fora, emite invisíveis antenas por todo ele, procurando captar a dor - ou as dores.

E a alma? Embora muitos não acreditemos que ele seja movido a alma, como dói, ah, como dói também essa controvertida essência do corpo! 

Pois todo esse inventário de obstinações e misérias somos nós, com os nossos 80 anos de vida. Se empurrando, se medindo, lutando acordado ou dormindo para não parar de repente, pra não perder o famoso lugar ao sol. Gritando pra ser notado. Pente fiel de rebanho  ao mesmo tempo fazendo coisas incríveis para marcar uma identidade pessoal, um destaque. Uma superioridade! 

Quem quiser que goste. Eu não. Nunca fui fanática por esse ciclo de prantos e lutas que começa num grito de choro e termina num suspiro. O temido último suspiro. Embora a gente se iluda, pensando que monitora o próprio destino e comanda as suas ambições, na verdade somos um engenhoso, um resistente robô que Deus cria e apaga não se sabe por quê. Nem pra quê. A gente nasce sem ter ideia disso e em geral morre quando não espera ou quando não deseja. Se vinga das partidas do destino gerando filhos que perpetuem a nossa passagem, com um nome, memórias, amor e saudade. Tudo absolutamente ilusório, mas já é um lugar-comum dizer que a vida, suas glórias, suas conquistas, sua bravura e miséria, é tudo uma ilusão.

A gente vive um sonho de carne e osso que acaba no acordar que é a morte.

É isso aí.

Aos que me festejaram, abraçaram, felicitaram, telefonaram, escreveram, telegrafaram, agradeço de coração as palavras de carinho e de solidariedade. E, principalmente, peço perdão por este desabafo meio incoerente.

Mas, eu tinha o direito a ele. Afinal, fui eu que fiz 80 anos!


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A escritora Rachel de Queiroz morreu em 4 de novembro de 2003, aos 92 anos, no Rio de Janeiro. Ela é considerada uma das vozes mais importantes da literatura brasileira do século XX e uma das maiores autoras da segunda geração modernista no Brasil. Autora de destaque na ficção social nordestina, foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, em 1977.

A trajetória de Rachel de Queiroz na literatura começou cedo, quando ainda era adolescente, com a publicação de seu primeiro romance, "O Quinze", em 1930. O livro trata da seca no Nordeste brasileiro e suas consequências sociais, e é um retrato contundente das condições de vida na região. Com essa obra, Rachel ficou nacionalmente conhecida, conquistando um lugar de destaque na literatura brasileira.

Sou muito fã de tudo que Raquel escreveu, suas crônicas e romances. E para mim, seu romance Memorial de Maria Moura é uma obra-prima. 


6 comentários:

  1. Linda a crônica da Rachel !
    Fazer 80 anos é uma alegria, mas por outro lado, tantos problemas aparecem...Estou com 76 e estou muito bem, até ir ao médico!rs...
    abraços, chica

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  2. Um belo texto. Temos muitas Rachéis hoje em dia, mas poucos para lerem-nas. Que bom que ela conseguiu publicar suas obras. Que tenha cada vez mais gente lendo Rachel.
    Sobre o assunto da crônica dela. Hoje não estou em um bom dia para assimilar bem. Talvez eu escreva a respeito no meu blog. Sobre o cansaço de existir e ser obrigado a continuar existindo. Amanhã, talvez.

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  3. Oi, Edu.
    Uma escritora admirável! Com uma história de vida sofrida e admirável também. Dela eu já li apenas algumas crônicas, mas tenho desejo expresso de ler os seus romances, entre eles o mencionado na sua postagem O Quinze.
    Que postagem sensacional!
    Amanhã um tio materno meu, que foi o primeiro filho dos meus avós, completará 80 anos de idade. Nós da família estamos muito felizes por ele chegar a essa idade, que os meus avós, pais dele, infeliz e certamente não chegaram; a mãe dele e da minha mãe mesmo faleceu no parto da minha mãe 62 anos atrás. Enfim, é uma idade pra se comemorar porque muitos não conseguem chegar lá.
    Bom fim de semana! 💐🎈

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  4. Confesso só ter lido uma ou outra de suas crônicas, mas gosto muito de uma frase sobre o ato de viver: "Doer, dói sempre. Só não dói depois de morto. Porque a vida toda é um doer".

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  5. Oi, Edu, que crônica, maravilhosa!!
    Já pensei em algumas coisas sobre o assunto, mas essa é
    uma das mais lindas crônicas que li dela.
    Ela, a crônica, nos leva a pensar em muitas coisas. E no final
    a gente pensa...Deus é nosso amigo?
    Por que temos de sentir dor? Por que temos de morrer em uns parcos
    anos de vida? Por que sofrem e morrem as crianças - pobres inocentes?
    Há um erro nessa criação, rssss. (brincadeira).
    Gostei imensamente de ler essa crônica, Edu.
    Um feliz domingo!
    Abraço.

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Oi. Se leu e gostou,
Obrigado e volte sempre!
Se não gostou, perdoe-me a falta de talento "escriturístico..."

Fazer 80 anos

  (crônica de RAQUEL DE QUEIROZ de 17/11/1990) O QUE ME DIZEM com mais frequência é: "oitenta anos, quem me dera, com tanta vitalidade!...